Quantas vezes eu quis falar com você, ouvir você, ver você? Quantas vezes quis ser filha, quis ter pai? Quantas vezes, na fértil e imatura cabeça de uma criança, a imagem e presença de alguém mais forte, seguro, protetor e estável, não se pintava?
Por toda minha vida tentei não me vitimizar, tão pouco me submeter a crença hipócrita de que minhas desilusões e erros estariam fadados a recair sobre os ombros de outra pessoa, mesmo que a responsabilidade disso fosse de alguma forma solidária.
Tenho mil motivos pra me sentir injustiçada, abandonada, sozinha, sem a culpa que justificaria a sua falta, mas nada disso faz com que eu me sinta melhor e, mal ou bem, mesmo enquanto criança, decidi não me sentir assim, e fui crescendo, superando a sua ausência e administrando o peso que caia sobre mim com toda a loucura em meio a que eu me encontrava.
Quantas vezes não imaginei a cena em que me encontraria e arrancaria toda sua atenção, a qualquer custo, pra que me olhasse e me visse, de fato; para que quisesse me “conhecer” e que pelo menos se importasse com isso. Mas a verdade é que até nos momentos de raiva e abandono, eu consigo entender suas razões e não te sacrifico por isso. Parte da responsabilidade por eu sempre ver você como uma boa pessoa, vem das histórias, muitas vezes fantasiosas, eu bem sei, da minha mãe, que sempre se referiu a você como um grande amigo, pessoa substancialmente bela, e mesmo que ela nem te conheça bem, e essa seja mais uma de suas falsas lembranças, eu gostei de acreditar nisso e talvez por isso tento encontrar uma maneira de não te punir nem sentir raiva… Consigo, na maioria das vezes, nas outras tantas, prefiro não pensar em você, pois, vênia à sinceridade, é mais confortante tê-lo como alguém que foi à uma viagem distante e não pôde mais voltar e por isso me priva do apoio e carinho de pai… Não gosto de lembrar que não é pela distância (que não existe) ou pelas dificuldades do dia-a-dia (que não são suficientes) que me deixou vivendo sem ter você por perto.
Seria como um tumor benigno, que eu sei que esta lá, mas não me faz mal…
Psicólogos teriam um prato cheio ao analisar todo o histórico de como me fiz forte na vida, passando por tantas experiências que nenhuma criança deve passar, e como eu ainda sinto uma enorme gratidão por você.
Calma, eu preciso ter calma pra escrever isso tudo, afinal, são 23 anos de emoções que escondi pra ninguém ver, nem mesmo eu, e tenho agora a oportunidade de expor.
Gostaria de começar me apresentando, pra sanar a sensação de que você sequer sabe quem eu sou, como penso, como ajo, como as pessoas ao me redor me vêem, ou como eu me vejo.
Poderia elencar meia dúzia de adjetivos que me conferem, mundo a fora, mas isso me reduziria mais que o necessário, poderia citar um ou dois acontecimentos que te obrigassem a imaginar minha infância, adolescência ou outro momento da minha vida em que se absteve, mas será que faria real diferença? A mesma pergunta que se faz fantasma por todos esse anos, retorna a minha mente: “por que você não se importa?”
Gostaria de descrever pra você como foram meus anos na escola, cheia de revolta, tristeza, e busca incessante por uma válvula de escape que me permitisse não lidar com a triste realidade de que minha mãe é doente, doente demais, ela não consegue se conter, ela não sabe me impor limites e responsabilidades porque está a maior parte das vezes sob o efeito de medicamentos fortíssimos, e eu não a culpo por isso, mas ao mesmo tempo eu teria que aprender a conviver com isso, sozinha. Minha “materfamilia”, deficiente, por excelência, ainda tinha seu único suporte corrompido por depressões, desequilíbrios e algumas tentativas de suicídio escancaradas à minha frente; uma pequena irmã mais frágil do que eu gostaria que fosse, a qual tentei poupar um pouco da novela, não adiantou muito… Era muita coisa para administrar e ainda manter um “pseudoequilibrio” !
Por isso fiquei conhecida como “problemática”, “difícil” e “complicada”. As poucas vezes que me encontrava com você ou com sua mãe, voltava para casa feliz, me sentindo acolhida, até ter que lhe dar com minha mãe, mais uma vez me dizendo “se não está satisfeita vai pra sua família rica que é melhor” e completava dizendo: “Ah! eles não te querem…” Eu relevava, sabia que ela nunca bateu muito bem da bola e falava coisas da boca pra fora. Será?
Apesar disso, fui uma criança feliz. Amadureci mais cedo que o normal, afinal, eram mais responsabilidades que o comum e eu não tinha muito em quem ou o que me apoiar.
Entrar na adolescência (precocemente) e descobrir que os problemas com a minha mãe estavam apenas começando, junto a um turbilhão de hormônios, e enormes dificuldades de aprendizado, foram uma bomba no meu caminho. Meu avô foi ficando doente e as coisas foram ficando mais difíceis pra todo mundo. Tomei algumas decisões tão erradas e sofri tanto por elas…
Até que conheci o Ronaldo, meu esposo, com o qual completo pouco mais de 2 anos de casamento, e 7 anos desde que as coisas começaram a voltar para seus devidos lugares, o que me fez crer que eu não estava abandonada, sozinha e sem amparo algum.
Muitas mudanças foram acontecendo, paralelamente. Fui lendo e conhecendo o espiritismo, e isso foi me dando um amparo e força que eu jamais supunha encontrar. Em meio a tantas informações reconfortantes, verdades e fé, estava Deus, que se fez o pai que a muito tempo eu clamava. Não quero parecer piegas ou fanática, mas isso tudo traduz uma fase de descoberta íntima e ao mesmo tempo responsável por eu estar me tornado quem sou hoje… Incrivelmente, acredite! Incrivelmente, na mesma época em que eu amadureci, cresci, me reinventei, minha mãe foi tomando jeito, foi se acalmando, mudando, a depressão foi sendo controlada, e aos poucos, penso que ela foi deixando de ser adolescente, junto comigo. Ainda doente, eu sei, mas ficou tão mais fácil!
Por fim, a outra corda que me tirou do buraco, e essa sim, eu lhe dou crédito, foi a oportunidade de iniciar uma graduação. O Direito já tinha me escolhido, eu apenas cedi! No início escutei de todos ao meu redor que isso seria uma verdadeira loucura! “Você? Direito? Não acha melhor escolher um curso mais fácil?”. Mas eu segui em frente, e hoje, satisfeita e realizada pela minha escolha, trilho o penúltimo semestre, quase 5 anos de muitas noites claras, muitos livros, muitas aulas, muito quebrar a cabeça. Em menos de um ano estarei graduada, feliz, advogada! E isso se deu em virtude da sua disponibilidade em ajudar, em fazer algo de importante pra mim, razão pela qual guardarei eterna gratidão! Foi uma ajuda que eu não esperava e que se tornou meio para que eu desempenhasse minha maior alegria e desfrutasse do enorme prazer de aprender o que no fundo, parece que já sei. Difícil explicar o que esse ofício que aprendo fez e faz em mim.
Passei um pouco pelo meu passado para que o que vou lhe dizer ficasse mais pessoal, e vindo de alguém não tão distante assim de você, e, em que pese eu deixe transparecer que o dia dos pais é pra mim um dia comum, não o é. Ao contrário, normalmente é um dia de tristeza e de alguns questionamentos sem resposta, mas esse ano, devido a alguns acontecimentos, decide respondê-los eu mesma, e ainda que tenha algumas outras explicações para essas minhas perguntas, acredito que se não me deu até hoje, não dará mais, assim como carinho, atenção, preocupação, saudade, amor de pai, e minhas respostas começam assim:
Com o passar do tempo, fui organizando os diversos campos da minha vida: profissão, estudos, casamento, minha casa, minhas coisas e minhas pessoas. Ciente de que já não adiantava eu tentar me aproximar de você e da sua família, ser a irmã mais velha e legal dos seus filhos - afinal demorei 7 anos para conhecer minha irmã mais nova e ver que meu irmão já é um rapaz e não a criança que eu me lembrava - me aproximei da Carol que, sempre com muito carinho, me tratou como uma querida neta e parte da família, parte essa que sempre quis ser! Me senti verdadeiramente abençoada pela dedicação das suas irmãs que, com corações enormes, me acolheram e sentiam alegria ao me ver. Percebi que embora meu pai não estivesse presente em minha vida, ele já tinha me dado de presente essas pessoas sensacionais e não sei explicar, mas me sinto muito mais parecida, quero dizer, encontro muito mais afinidade com elas do que com a própria família em que fui criada, e isso me fala muito sobre mim, permitindo que eu me conheça um pouco mais e entenda quem eu sou, porque ajo dessa ou daquela forma, e até mesmo que minha risada é escandalosa sim, mas eu tenho a quem puxar. Ah! A satisfação que sinto ao ouvi-los me comparar com você, afinal, eu nunca soube quem você é ao certo, como posso ter os seus trejeitos? Genética. Eu sei. Mas eu gosto de sentir que algo me faz parte sua, mesmo sabendo que posso ter sido apenas um erro no percurso, um acidente e que depois que eu me formar e seu compromisso financeiro se findar, acabaram também minhas desculpas para falar com você e sabe-se-lá quando vamos nos falar de novo.
As razões pelas quais não sinto raiva, nem hostilidade pelo real “abandono afetivo” o qual me relegou, não te isentam da responsabilidade que tinha sobre mim, nem te eximem do compromisso que tinha comigo, mas não vou te julgar por isso, nunca fiz, e não será agora a primeira vez, isso, um dia, a sua consciência o fará. O que me incitou a escrever e falar isso tudo é que hoje, no dias dos pais de 2014, é que, muito recentemente, passei por umas das experiências mais ambivalentes que experimentei até hoje.
Digo sobre aquele dia em que, felizmente ou não te encontrei na casa da Carol. Possivelmente não sabe da história toda, então vou te contar, e depois, terminamos com essa tortura que há muito evitávamos…
Pouco antes de escutar a sua voz vindo da garagem, conversávamos sobre como é viver sem sua presença, pra quem não conceber a criação de uma criança sozinha, assustadas talvez com minhas declarações, por que até ali, sinceramente, eu sentia falta de uma base, estrutura, amparo que só um pai é capaz de proporcionar, mas que apesar disso, como eu nunca tive, difícil retratar a dimensão do que isso me causou, e é verdade! Não sei se eu seria melhor ou pior, mais ou menos feliz, sei que isso influenciou e muito em tudo pra mim. Algumas vezes meus olhos encheram-se de lágrimas, por sentimentos que eu não gosto de ressaltar, despontarem meio a conversa, fazendo transparecer a fragilidade da barreira de segurança que criei pra não cair. Falei-lhes sobre como foi complicado viver com minha mãe, sempre tão instável, mas que eu não te culpava por isso (nem culpo). Na verdade não culpo ninguém. Você talvez não tenha descoberto, a tempo, o que era ser pai, pra mim, e jamais te crucificaria por não estabelecer vínculos sentimentais e involuntários comigo, afinal, involuntários são!
Lembro-me de ter lhes contado como foi emocionante e ao mesmo tempo dilacerante pro meu coração escutar você me chamar de “filhinha” ao telefone, certa vez. Um choque, eu senti. Não é para menos pois, mesmo que eu tenha me escondido atrás do fato de que não ter pai presente é não ter pai, eu tenho pai e ele acabou de me chamar de “filha”. Eu sei, pode parecer drama, mas foi de fato um drama mesmo. Para evitar “chororo” mudamos logo de assunto, porque esse eu, definitivamente, não gosto de falar.
Isso explica um pouco, ou não, do susto que levei ao ver, pela janela da cozinha, que você chegava, com a Julia, a irmã que eu não conhecia. Logo me dei conta que o susto meu, não era nada em face da sua reação ao me ver, desde o casamento, que chegou atrasado, não me viu e nem entrou comigo no altar, o que eu já contava, e ainda me arrancou lágrimas quando me virei e me deparei com você na “platéia”. Não faço ideia do que se passou na sua cabeça naquele momento, mas eu queria saber… Mas engraçado mesmo foi o quão estagnada a Cristina ficou. Eu ainda vou entender porquê ela não gosta de mim. Vocês não sabiam como me apresentar para os meninos e depois eu vim a saber a chocante e cruel razão disso. São meus irmão e vocês não podiam me privar disso e sobretudo, privá-los disso, mas não me cabe falar disso, me cabe sim, dizer o que tive vontade de dizer quando o ouvi falar que não tinha encontrado forma de lhes contar sobre a minha existência.
Tive vontade de chorar, e fui forte, engoli, como tenho feito ao longo desses anos todos. Sorri como forma de educação mas entalou na minha garganta o fato de que a psicóloga não soube ensiná-los a inserir essa informação. Engraçado. O que a psicóloga diria sobre mim? Sobre a ausência de afeto, a exclusão e privação injusta pela família, a recusa em fazer parte da história, a omissão frente aos desafios de se criar um filho. Fiquei curiosa no momento sobre o que ela iria dizer sobre isso. Seria mesmo a “forma de contar-lhes” sobre mim, o maior problema de tudo isso? Alguma vez você se preocupou comigo? Em como eu me sentia ou sinto? Como passei por maus apuros relacionados à saúde, escola, dificuldades outras? Alguma vez passou pela sua cabeça fazer diferente?
E aquela mesmo pergunta surgiu, como de costume: “Por que, pai, você não se importa?”. Agora encomendei uma resposta que tira o peso da sua responsabilidade e ainda me conforta: Não se escolhe a quem amar, a gente ama, não é mesmo? E esse involuntário sentimento não nos é imposto, naturalmente surge na família. Eu só não entendi ainda por que eu não pude fazer parte da sua.
O emocionante encontro não parou por aí… Fui obrigada a ver, com seus três filhos pendurados em você, e em troca, estava lhes dando todo carinho e atenção característicos, com cuidados e preocupações dedicadas aqueles pequenos e dependentes seres… E aí então senti uma triste e irrevogável sensação, que não acreditaria ser possível, até aquele momento, quando vi a Julia, com os cabelos semelhantes aos meus naquela mesma idade, se debruçar sobre você com uma intima feição de filhe buscando carinho do pai, e o retorno foi instantâneo, recíproco, belo. Foi a primeira vez que vi meu pai, sendo pai. Verdadeiramente pai. Não o pai que paga, que custeia, que fornece parte das necessidades pelo dinheiro, que paga um boleto - pai-filho-boleto. E me dei conta de um pouco do que fui privada, do que perdi, do que não senti. Do apoio, do colo, do olhar de cuidado que nunca tive, que nunca soube pedir, e que, sem saber porque, não tive a oportunidade de receber. Mas como disse, não sou nenhuma vítima, passo apenas por aquilo que tenho necessidade de passar, e essas experiências na vida de todos nós nos fazem mais fortes, melhores e assim, aprendemos a valorizar todos que estão a nossa volta, por que quando falta um, percebemos quão incompletos nos tornamos.
Na despedia, por mais que eu tenha me esforçado muito, não consegui conter, tantas emoções que se alforaram e me acometeram à um momento de introspectiva reflexão e me forçaram a lhe dar com um sentimentos que ou eu desconhecia, ou fingia não sentir.
A bem da verdade, mais uma vez me sinto grata por aquilo, eu precisava entender o motivo da distância, da indiferença, da privação de fazer parte disso tudo. Eu precisava reconhecer, por mim, e mais ninguém, que não sou tão forte como demostro, tão indiferente como gostaria, mas nem por isso deixo de ser grata, não por ser "meu" pai, mas pelo pai que eu sei que você é.
Feliz dias dos pais, pai!